Precisamos falar sobre água

Por: Letícia Toledo

Até 2008, menos de 30% dos 4,5 milhões de habitantes da Região Metropolitana do Recife tinha acesso a esgotamento sanitário. Foi quando a companhia de saneamento do estado, a Compesa, decidiu lançar um plano ambicioso: levar coleta de esgoto a 90% da população da região metropolitana. Para cumprir a meta, a Compesa precisava se unir à iniciativa privada.

Durante três anos a companhia estudou as alternativas e, em fevereiro de 2013, fechou um contrato de Parceria Público Privada com a Odebrecht Ambiental. O documento final prevê um investimento total de 4,5 bilhões de reais — 3,1 bilhões de reais da empresa privada e 1,4 bilhão de recursos da União e do Estado. Mas no meio do caminho havia uma crise sem precedentes na história do país. Como consequência, a verba pública para o investimento atrasou. Como o contrato determina que os investimentos privados só podem avançar na mesma velocidade que os dispêndios públicos, as obras pararam. “Houve multas, algumas rescisões de contratos e hoje estamos rediscutindo com a Odebrecht um novo cronograma de obras”, diz Ricardo Barreto, diretor de Novos Negócios da Compesa.

A 2.000 quilômetros dali, no município de Divinópolis, em Minas Gerais, a empresa estadual de saneamento Copasa assinou um contrato de parceria de investimentos com a espanhola Acciona Agua. O prazo inicial para a construção das Estações de Tratamento de Esgoto, até o fim de 2016, teve que ser adiado para 2018. Além do atraso de verbas públicas, houve atrasos na liberação de licenças ambientais. “O aval precisa vir das três esferas, é um processo demorado, complicado. Traz insegurança para o setor privado e leva o projeto para outra realidade fiscal”, diz André Clark, presidente da Acciona no Brasil.

São dois exemplos da participação privada no setor de água e saneamento no Brasil que mostram a complexidade e os problemas que impedem o avanço do capital privado no setor. Analisá-los é fundamental num momento em que o país tenta multiplicar os investimentos privados em seus depauperados serviços públicos.

O BNDES, o banco de fomento do governo federal, está financiando estudos para projetos privados de água e saneamento em 18 estados. Esses estados aceitaram participar do programa estadual de saneamento desenhado pelo BNDES e do Programa de Parcerias de Investimento (PPI) do Governo Federal. Os estudos indicarão aos estados qual o melhor modelo de participação privada, que pode ser em forma de concessão, subconcessão ou parceria público privada, por exemplo. A expectativa do BNDES é que os primeiros editais para licitação dos serviços sejam lançados no início do ano que vem.

A esperança é que o capital privado ajude a resolver a desesperadora situação de saneamento básico no Brasil. Mais de 100 milhões de brasileiros (49,7% da população) não são atendidos pela coleta de esgoto e 35 milhões de pessoas (16,7% da população) não têm abastecimento com água tratada. Para garantir que toda a população seja atendida por esses serviços de forma integral, o país precisa investir 317 bilhões de reais entre 2015 e 2035, o equivalente a 16 bilhões ao ano, segundo estudo elaborado pela Instituto Trata Brasil. A média nacional de investimento no setor atualmente é de 12 bilhões por ano.

A iniciativa privada é responsável hoje por apenas 5% do saneamento no país (316 cidades). As companhias públicas estaduais atendem a 70% dos municípios e as prestadoras públicas locais e microrregionais abastecem os 25% restantes. Em países como a Alemanha a gestão privada chega a 60% do total.

As inseguranças do regulação

Para analistas do banco BTG Pactual, a privatização de pelo menos 13 das 18 empresas de saneamento que integram o PPI poderá render aos caixas dos governos estaduais de 20,5 bilhões a 35,6 bilhões de reais.

Mas executivos e especialistas ouvidos por EXAME Hoje afirmam que para chegar a esses números será preciso resolver uma série de entraves que historicamente afastam investidores privados deste mercado. O BTG Pactual afirma que o preço da Cedae (companhia do Rio de Janeiro), por exemplo, pode variar entre 3,5 e 10 bilhões de reais, a depender da regulação.

“A lei do saneamento não esclarece de quem é a competência dos serviços. Hoje se deduz que como a concessão tem impacto local, a competência é municipal. A lei não fala sobre isso. Conforme os governos mudam, a prefeitura pode querer romper o contrato no meio do caminho”, diz Roberto Tavares, presidente da Compesa e da Associação Brasileira das Empresas Estaduais de Saneamento.

Além do fator político, é um risco deixar os serviços de saneamento na mão dos mais de 5.500 municípios brasileiros porque muitos deles não têm mão de obra técnica ou recursos suficientes para estabelecer e avançar em um plano de saneamento. Segundo Luciana Lannar, especialista da área ambiental da Viseu Advogados, apenas 30% dos municípios têm plano de saneamento. “O poder público não tem condições de definir uma concessão ou privatização sem ter um plano de saneamento básico”, afirma.

A maioria dos contratos para prestação de serviços aos municípios não passou por uma licitação e, segundo Kleber Zanchim, presidente da Comissão de estudos de saneamento do Instituto dos Advogados de São Paulo, eles não têm validade com o setor privado. “São os chamados contratos de programa. Esses contratos são extintos a partir do momento em que se privatiza a companhia, está na legislação”, diz.

A revisão tarifária também é um empecilho. Não há uma padronização. Em alguns casos, a tarifa é fixada já no início da concessão e reajustada pela inflação ao longo do contrato. Há situações em que não há um modelo de regulação definido, o que dificulta o planejamento de negócios das empresas e gera insegurança jurídica. Analistas do BTG Pactual defendem que a regulação das tarifas seja tocada por agências estaduais, como acontece em São Paulo e no Distrito Federal e está em processo de aplicação em Minas Gerais e no Pará.

“O problema é que as tarifas sofrem interferência política. Alguns afirmam que a definição das tarifas não deveria ser dos governos locais. Mas o mais importante é garantir que não haja interferência em qualquer nível”, diz Gesner Oliveira, da consultoria GO Associados.

Superados esses entraves bem brasileiros, sobra uma discussão que se espalha pelo mundo. A expertise da iniciativa privada certamente é bem-vinda neste mercado, mas como?

Na Alemanha, onde a participação do setor privado vem crescendo, os municípios têm o poder sobre a prestação de serviços e podem decidir concedê-los à iniciativa privada. Já a regulação de todo o setor fica a cargo de um órgão nacional. Na Inglaterra, considerada uma referência em termos de participação privada, foram criadas dez companhias regionais de água – cada uma correspondente a uma bacia hidrográfica. Para atrair mais interesse privado, as companhias abriram capital em bolsa e seu controle passou às mãos de holdings chamadas de Public Limited Companies. Foi criada uma agência independente para fiscalizar os serviços, chamada Water Service Regulation Authority (OFWAT). A OFWAT criou  um sistema que estabelece um limite de tarifas considerando os custos de longo prazo. Já a regulação sobre qualidade da água e administração de recursos hídricos fica sob responsabilidade de secretarias do estado.

A total privatização desses serviços não é um modelo comum no exterior. Em sua grande maioria, empresas privadas de infraestrutura e fundos de private equity atuam sob concessões em prazos que variam entre 20 e 45 anos.

“A alternativa mais viável é a concessão ou subconcessão de um ou mais serviços. As Parcerias Público Privadas muitas vezes têm o risco de depender de recursos públicos. Nas concessões, o risco que a iniciativa privada corre é de o consumidor não pagar a conta. É esse o risco que dá pra correr”, diz Flávio Crivellari, diretor financeiro da Aegea Saneamento que atende 48 municípios no país sob o modelo de concessões.

Para garantir o interesse do setor privado executivos defendem também que é preciso unir operações que hoje são deficitárias com municípios saudáveis financeiramente. “No sistema público operamos dezenas e dezenas de deficitárias. Mesmo assim, conseguimos lucrar porque operamos ao todo 170 municípios, temos escala. Alguns dão prejuízo, mas o resultado final é compensado por outras”, diz Roberto Tavares, presidente da Compesa.

O Brasil na contra mão?

Enquanto o Brasil se organiza para aumentar a participação privada no saneamento, os países desenvolvidos repensam a estratégia. Entre os anos 2000 e 2015, 235 grandes cidades em 37 países trouxeram os serviços de água e esgoto que estavam sob concessões de volta para o controle público, segundo dados da empresa de pesquisas Transnational Institute.

“O Brasil está no caminho inverso do restante do mundo. O debate que está sendo feito hoje no país já foi feito há 25 anos. Está muito claro, após 25 anos de estudos, que o setor privado não é mais eficiente que o público no saneamento”, diz David McDonald, pesquisador da universidade canadense Queens e autor do livro Remunicipalisation – Putting Water Back into Public Hands.

Quase 60% dos casos das chamadas “remunicipalizações dos serviços” ocorreram por rescisões de contratos, enquanto o restante resultou da não renovação após a expiração do prazo. Entre os motivos para os términos estão: corrupção, falta de transparência, preços excessivos, contratos controversos e não cumprimento dos investimentos previstos.

Em Paris, por exemplo, as empresas Veolia e Suez tinham contratos de concessão até 2009. Em 2002, uma auditoria foi solicitada pela cidade por conta da falta de transparência financeira. Ela revelou que os preços cobrados pelas empresas privadas eram entre 25% e 30% superiores aos custos econômicos justificados. Em 2003, a auditoria descobriu ainda uma enorme e crescente diferença entre as reservas financeiras que essas companhias tinham para a manutenção dos serviços e os trabalhos que efetivamente eram realizados. Mesmo assim, o contrato seguiu até o fim. Em 2010, primeiro ano de operações da companhia municipal Eau de Paris, as tarifas foram reduzidas em 8%.

“A tarifa pode ser definida já no contrato, isso resolve o problema. Se o lucro da companhia privada com as tarifas for alto é porque a empresa buscou e ganhou eficiência”, diz Crivellari, Aegea Saneamento. Atualmente, a tarifa média praticada pelas empresas privadas no Brasil é 16,3% maior que amédia nacional e 7,3% superior às das empresas estaduais, segundo dados do Sistema Nacional de Informações sobre Saneamento.

Em Buenos Aires, oito meses após um consórcio liderado pela companhia Suez-Lyonnaise des Eaux iniciar a concessão dos serviços da cidade, em 1993, por um período de 30 anos, a companhia pediu sua primeira “revisão extraordinária” das tarifas. De maio de 1993 a dezembro de 1998, a empresa não realizou 57,9% dos investimentos inicialmente previstos. Em 2012, o governo cancelou o contrato de concessão e criou uma companhia pública para gerir os serviços.

Umas das grandes críticas feitas aos investimentos privados em saneamento é, como se vê, a falta de investimentos para ampliar a rede de coleta. Num país com a cobertura precária como o Brasil, é um problema em potencial. Claro que isso pode acontecer também com companhias estatais, como é o caso da Cedae, no Rio. A companhia é responsável pelo saneamento básico em 64 das 92 cidades fluminenses. Em 2016 ela lucrou 379,23 milhões de reais — 54% a mais do que em 2015. Neste período, os índices de atendimento de água e de esgoto cresceram míseros 1,32% e 0,66%, respectivamente. Apenas 35,6% de seus clientes têm coleta de esgoto, enquanto a média brasileira é de 50,3%.

O Chile resolveu essas questões investindo primeiro na ampliação da coleta para só então privatizar a administração. Hoje, o país tem 94% de seus serviços de água e saneamento sob iniciativa privada. Os níveis de cobertura de água e esgotamento são universais e o tratamento de esgoto é próximo de 100%.

Até 1977, a prestação dos serviços no país era realizada em sua maioria por empresas públicas que cobravam tarifas baixas da população, o que tornavam os investimentos no setor insuficientes para a expansão e a melhora dos serviços. A partir daquele ano, a prestação de serviços de água e esgotamento passou para responsabilidade de uma empresa pública nacional que gerenciava 11 companhias regionais e duas autônomas. O principal objetivo das empresas era justamente aumentar os níveis de atendimento e esgotamento sanitário com financiamento público e empréstimos do Banco Mundial.

Entre 1987 e 1990 o índice de cobertura do serviço de água passou de 78% para 98% da população chilena e o serviço de esgoto foi ampliado de 52% para 82% do país. Entre 1991 e 1994 as tarifas foram reguladas, sofrendo aumentos graduais para pagar os empréstimos do Banco Mundial e tornar as empresas públicas financeiramente saudáveis e rentáveis. A partir de 1995 se iniciou um processo de privatização e concessão das empresas.

Estudos apontam que a privatização e concessão melhorou a produtividade, os níveis de investimentos e o padrão dos serviços. “Ainda há desafios para a transferência dos ganhos em eficiência as tarifas, e na melhora da correlação entre o nível tarifário e salários (em particular em época de recessão econômica)”, destaca estudo da Confederação Nacional das Indústrias.

“O papel do estado foi fundamental porque era um setor com uma série de desafios. Historicamente faz sentido pensar no investimento estatal, mas em determinado momento a capacidade de investir se exaure”, diz Kleber Zanchim, sobre o exemplo chileno. O Chile, evidentemente, não é o Brasil. Mas mostra que só investimento privado não resolve problemas — é preciso planejamento.

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Renato Butzer